Saturday, June 19, 2010

Fado

Deixou-se levar pela folha em branco. Não, corrigiu. Pela necessidade de pintar a folha em branco. Esvaziar aquele espaço cheio de nada. Colori-lo. Dar-lhe uma nova cor. Irregular. O preto a sobrepor o branco de forma pouco articulada. Claramente desalinhada, geometricamente pouco reconhecível.
Pensou nos tempos que a pontuação lhe permitia escrever. Em como as vírgulas tornavam a leitura toda mais acelerada. E os pontos finais num novo cabo das tormentas que se erguia para fazer com que o leitor se demorasse no trilho das palavras. E a falta de pontuação? Seria possível dissertar sem pontuação? Uma verborreia de pensamentos desalinhados e desenquadrados de qualquer realidade pois dificilmente seriam apreendidos por uma terceira pessoa que não ele próprio enquanto escritor e com alguma dificuldade pelo seu alter-ego de leitor. Experimentou… ainda… as… reticências… esse sinal… que permite prolongar… a vida… transformando-a numa dura… e longa… penosa… caminhada… tal como o Homem… aquele com quem se cruza… diariamente… e que… já com dificuldade… ainda… vai… comprar o seu… próprio… pão… à padaria.
Rapidamente regressou aos pontos finais. Às frases. Por vezes apenas com uma ou duas palavras. Paradas a meio. Detestava aquela escrita que parecia não querer avançar. Ainda assim, era aquela na qual se sentia mais confortável. Convencido de que o domínio da gramática lhe permitia abusar de forma perceptível da pontuação.
Chegou a meio do que queria escrever naquela página em branco. Não a meio da página, porque essa, com aquela escrita tremendamente desalinhada, estava praticamente preenchida.
Não terminaria o pensamento. Não diria tudo o que planeara.
E, no fim, quase no fim, sentiu saudades da pureza do branco. Agarrou numa tinta, fina, e preencheu de novo a folha. Mas os vincos, as marcas deixadas pela força da caneta no papel não desapareceram. Nunca desaparecem.

3 comments:

Ana said...

sem dúvida, a melhor coisa que li hoje sobre... sobre escrita.

someofme said...

E eu a pensar que tinha escrito sobre a vida... :P

Unknown said...

Gostei bastante. Mas mais do que a escrita, este texto falou-me da vida. Do que acontece e dos recomeçares eternos.