Thursday, January 03, 2008

Arrumações (ou um texto em Dois Actos)

Acto I

Ficou sentada, imobilizada na cadeira, enquanto ele colocava a chave na porta. Estremeceu com o ranger da madeira. Cortou um pedaço de carne, voltou a estremecer com o barulho da faca a tocar no prato, passou-a pelo molho, levou o garfo à boca enquanto sentia o primeiro passo. O perfume dele, sempre exagerado, invadiu-lhe as narinas. Uma repentina sensação de enjoo apoderou-se dela. Por momentos, julgou ter de se levantar para ir à casa-de-banho, ter de olhar para ele, eventualmente, ter mesmo de lhe falar. Aguentou-se. Manteve a compostura. As costas direitas na cadeira. Continuou a comer. Lentamente, numa tentativa de apurar os restantes sentidos, levou uma batata à boca. Começou a mastigar. Silenciosamente, para que o seu barulho não se confundisse com os que vinham do quarto ao lado.

Pareceu ouvir-lhe a voz. Estaria a sonhar? Pareceu-lhe que murmurava. Que aquela situação não fazia sentido. Que não queria sair de casa. Pareceu ouvi-lo chorar. Como naquela primeira noite em que se conheceram. Devia estar a imaginar. Talvez fosse aquilo que queria ouvir, sentir. Afinal, foi ele quem quis sair de casa. Foi ele quem a deixou ali, sozinha, de costas direitas na cadeira e a estremecer com o barulho de uma faca a tocar no prato enquanto corta um pedaço de carne.

Podia sentir-lhe os passos. Não os ouvia. A profissão ensinou-lhe a caminhar com pezinhos de lã para não a acordar a meio da noite. Ela desenvolvera a capacidade de sentir as deformações no soalho à medida que ele o ia pisando. Podia sentir o calor dele a abandonar o lar, a transformar aquele espaço em mais um dormitório, numa casa. Por cada cabide, por cada peça de roupa que ouvia sair do armário e cair na cama, por cada dobrar de camisa, era como se as janelas estivessem abertas naquela noite de inverno e a temperatura lá dentro se assemelhasse cada vez mais à que estava lá fora. Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.

Naquele instante, desejou levantar-se. Ir ter com ele. Abraçá-lo. Beijá-lo, amá-lo. Levantou-se ao ouvir as correias da mala a fecharem-se. Voltou-se para a porta atrás de si, aberta. Sentiu o soalho a deformar-se, a vibrar, enunciando os passos dele. A falta de luz no corredor não lhe permitia ver mais que um vulto. No entanto, teve a sensação de que antes de abrir a porta da rua, antes de sair, ele se teria voltado e a teria olhado nos olhos.

Sentou-se, ficou imobilizada na cadeira, enquanto ele fechava a porta. Estremeceu com o ranger da madeira. Cortou um pedaço de carne, voltou a estremecer com o barulho da faca a tocar no prato, passou-a pelo molho, levou o garfo à boca enquanto uma lágrima lhe escorria pelo rosto até ao canto do lábio e se misturava com o sabor do jantar.

1 comment:

Sara said...

És o maior... Tá um grande textinho!!!

E como diria a Ani Difranco: " (falling is) like you're choosing between choking and spitting it all out"!!!