Saturday, June 12, 2010

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Bateu à porta com a suavidade de um prato atirado contra uma qualquer parede. Um estrondo único, preciso. Eficaz. Do outro lado, um salto como se a imagem que se formou fosse demasiado perturbadora para não voar. A queda resultou numa posição quase fetal, embora visto pela perspectiva tradicional, se encontrasse de cócoras em cima do sofá, braços a envolver as pernas num estranho gesto de protecção. De novo o estrondo, desta vez sem salto. Repetido a intervalos cada vez menos espaçados. Sem resposta. Uma luta sem fim à vista com cada um dos exércitos convictos de que venceria aquela batalha.
Não se falavam há uns meses. Um rasgão no tempo que conduziu à inércia que lentamente foi retirando a vontade de recuperar contacto. Presentes quando os olhares se cruzavam num qualquer contexto social. Não se limparam do sistema um do outro. Uma não chegada indiferença que por diferentes razões conduziu àquele momento nas suas vidas. Um punho fechado de encontro a um protegido estômago do outro lado da porta.
Horas volveram sem que o espectáculo se tornasse cessante. Quanto tempo aguentariam os dois naquele duelo de titãs?
Um confronto ensurdecedor em que o cordeiro podia bem ser o predador não fosse o outro ter-se adiantado. Um não calculado primeiro passo que lhe conferiu a vantagem do punho fechado, restringiu o outro soldado à permanência por detrás da trincheira.
Minuto a minuto, os gestos adquiriam características de autómatos abandonados da teatralidade de uma histórica encenação. Quão passiva pode uma pessoa ser quando nos invadem o nosso refúgio com tamanho ruído?
Do outro lado do monte de terra, um bom estratega não se limita a esconder-se para salvar a pele. Refugia-se à espera do contra-ataque. Do correcto momento que fragiliza o adversário, revela uma brecha na segurança intransponível, possibilita um ágil, imperceptível movimento. Segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas… Esperaria o tempo necessário para libertar a fúria crescente, o alimento dos injustiçados, vencer.

3 comments:

Ana said...

tentei comentar ontem, tentei comentar hoje. Não consigo dizer mais do que o facto de já ter lido este texto 4 ou 5 vezes e de cada vez, ele me gritar de maneira diferente.

Gosto.

E acho esta frase incrivelmente visual. E boa: "Minuto a minuto, os gestos adquiriam características de autómatos abandonados da teatralidade de uma histórica encenação. Quão passiva pode uma pessoa ser quando nos invadem o nosso refúgio com tamanho ruído?". Esta e a primeira, que abre o texto.

someofme said...

E tudo escrito ao som do Somewhere Over the Rainbow do Rufus... I'm a sick person! :P

Unknown said...

Artisticamente descritivo e reflexivo. Entre o eu e um eles ferido pela revolta. Tens aqui um belo texto :D