Sunday, November 14, 2010

Voar

Do outro lado da rua nem imaginas o que te possa estar a fazer. A tua despreocupação revela-se particularmente preocupante quando permites que facilmente entre na tua vida, te siga, conheça o teu andar, a forma como gesticulas enquanto falas, enquanto discutes ao telemóvel. Poisa-lo em cima de um qualquer objecto, modo alta-voz, certamente, os braços inicialmente caídos adquirem movimento à medida que a tua expressão se transfigura. O teu semblante de anjo assustadoramente transforma-se durante toda a conversa. Uma gárgula consegue ser mais bonita. E tanto que tu discutes ao telefone.
Fico ali, assim, durante minutos revestidos de horas a ver-te falar ao telefone. A perguntar-me incessantemente porque não te deixas. E sais janela fora.
Cronometro os segundos que demoras a sair de casa. Agarras nas chaves, no cartão multibanco, o telemóvel fica em cima do objecto onde o pousaste. Imagino-te a abrir a janela enquanto corro escada abaixo. Como por magia, saímos ao mesmo tempo. Sorrio-te.
Ignoras-me.
O orgulho ferido de pássaro que sempre soube ser livre não te deixa voar mais alto para que não tenhas a oportunidade de me ignorar. Finjo seguir na direcção oposta para te reencontrar à entrada do bar. Aterras no balcão. Sento-me ao teu lado. Sorrio-te.
Ignoras-me.
Durante aquela meia hora em que estamos sentados lado a lado tenho a vontade de te oferecer uns olhos novos. Uns que estejam programados para me ver. Uns que me tornem opaco, que ponham fim à transparência a que me renegas.
Peço o whisky detestável que bebes na tentativa de criar algum tipo de afinidade contigo. Bebemos três shots. Sempre ao mesmo tempo numa perfeita sincronia que combinada ou ensaiada não seria tão monumental. Nem nisso tu reparas. Mergulhas o pensamento no que te faz sofrer e esqueceste-te que há outro caminho. Que os voos podem ser mais altos, mais perto do infinito. Ensina-me a voar como só tu sabias fazer. Ensina-me a voar a teu lado, reaprende que é possível ir mais longe, querer mais, desejar sempre mais, que não nos esgotamos na mediocridade dos que nos prendem à terra.
Levanto-me antes de ti para te esperar numa esquina. Paro, acendo um cigarro. Sorrio-te quando passas.
Ignoras-me.
Rumo a casa. Preparo-me para te ver deitares-te. Não sem que antes agarres no telemóvel, marques o número, a tua face se transforme num gigantesco sorriso de quem resolveu todos os seus problemas, de quem está feliz.
Guardo o telemóvel no bolso. Desço as escadas. Subo as escadas. Abres-me a porta. Saltas-me para cima, os braços em volta do meu pescoço, as pernas a envolver-me a cintura. Segredas-me ao ouvido que queres ver as estrelas e rapidamente viras a cara para a janela aberta indicando-me o caminho. Não te pergunto nada. Nunca te pergunto nada. Ganho balanço. Corro. Salto em direcção à lua. Sorrio-te.
E tu não me ignoras.

4 comments:

Domus quieta said...

Ver sempre mais :)

someofme said...

Desde que haja um porto seguro... E sempre bom regressar a "casa".

sofia said...

então é por isto que devo voltar ao mundo virtual... sorrio.

someofme said...

Também tenho de voltar ao mundo virtual... vou tratar disso agora.