Baixou-se para agarrar de novo Carla pelos braços, levantando-a qual saca de batatas, um peso morto sem reacção física possível, sem forças para se defender. A voz da mãe na cabeça: «Tu não lhe podes contar! Não podes ficar com ele!» E a recordação de que tentara retorquir. E a recordação da mão da mãe na cara dela. E a recordação das lágrimas salgadas a fazerem-lhe a cara avermelhada arder. A voz da mãe: «Tu não lhe podes contar!» A voz da mãe misturada com a voz dele.
(...)
Largou-a. Começou a andar em círculos. Um pé à frente do outro. Em círculos. Deu duas ou três voltas ou talvez quatro ou cinco ao cadeirão vermelho. Parou de frente para o vidro. Perdeu-se na escuridão. Imaginou-se a correr. Imaginou o vidro a partir-se com o seu embate, a cara cravada de pequenos e grandes vidros, ensanguentada. A chuva a misturar-se com o sangue numa queda vertiginosa, lenta apenas na sua mente. Imaginou os vidros a perfurarem-lhe ainda mais o corpo com o embate. A pedra a transfigurá-lo. O mar a arrastá-lo para longe. Imaginou tudo como imaginara 20 anos antes, mas sem o desespero que na altura sentiu por não a conseguir contactar. Por não saber dela. Pela resposta vaga dos pais de Carla ao telefone. A voz da mãe de Carla na sua cabeça: «Ela foi-se embora.» A voz da mãe de Carla de novo a ecoar nos seus ouvidos: «Ela não quer saber de ti.» A voz da mãe de Carla a apoderar-se dele de novo.
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