Thursday, December 04, 2008

Dr. Fonseca

Caro Dr. Fonseca,
Dirijo a si esta carta, pois já sei que serei encaminhado para o seu consultório após este pequeno incidente.
Peço-lhe desde já desculpa por pô-lo a pensar nestas minhas palavras. Não julgue que o meu campo vocabular e construção frásica são invulgares para a minha idade. Terei de lhe dar razão, mas eu não sou uma criança normal. Aos dez anos descobri esta minha capacidade. Chamem-me prodígio, sobredotado,... apelidem-me como quiserem.
Deve estar a pensar que sou doido. Engana-se! Sigo o meu destino e não o tento mudar, apenas isso. Demorei seis anos a capacitar-me de que nada podia fazer para evitar o que aconteceu.
Ligo agora o rádio. Não sei como me exprimir. É a primeira vez que o faço. Sinta comigo a música e talvez me compreenda melhor. «When I was just a little girl, I asked my mother ‘What will I be? Will I be pretty? Will I be rich?’ Here’s what she said to me ‘Que sera, sera! Whatever will be, will be! Our future’s not ours no see. Que sera, sera! What will be, will be!’» Tão certa e, ao mesmo tempo, tão errada. Quem disse que não podíamos prever o futuro?! 
Há seis anos que vejo este dia. Vezes sem conta tentei evitá-lo. Vezes sem conta tentei adiá-lo. Fiz tudo ao meu alcance para que esta minha tentativa de suicídio fosse bem sucedida, mas os deuses não me concederam tal alegria. Nos últimos seis anos frequentei os mais diversos consultórios das mais diversas ciências, apelidadas pela nossa sociedade de ocultas, desde a astrologia ao espiritismo, passando mesmo por práticas satânicas. Muitas das pessoas com quem falei não acreditaram em mim. Outras houve que reclamavam ter passado pelo mesmo. Mas ninguém, ninguém sabia solucionar o meu problema, pois todos diziam que essa recordação não passava de um pesadelo do qual não conseguiam sair, até que um belo dia simplesmente desapareceu.
Tudo eu tentei até à véspera do dia D, em que me apercebi que nada havia a fazer. Então, conformei-me, sentei-me à minha secretária e comecei a escrever esta carta.
Já passou uma hora. O rádio continua ligado, as músicas ecoam nos meus ouvidos sem que eu lhes apreenda o sentido. Vivemos numa sociedade extremamente fútil. Até a canção é espelho do nosso distanciamento do verdadeiro significado da existência humana. Preocupamo-nos com o amor, com o que vamos vestir, como que vamos comer... Mas será que algum dia pensámos que não precisamos de nada?
Já estou a tornar esta carta um mar de divagações. Há tanto que desconhecemos. A minha infância passei-a a desejar este conhecimento. Com sete anos procurava-o desesperadamente. Hoje, desejo nunca o ter encontrado. «Porquê eu? Porquê a minha pessoa? Porque teria de ser eu a conhecer a mão do destino?», faço-me estas perguntas todos os dias.
Queria ser objectivo, mas por mais tentativas que faça, não o consigo. As horas passam lentamente levando os meus pensamentos, que fluem com o sangue que irriga o nosso cérebro.
Queria transmitir-lhe os meus sentimentos, angústias, problemas, questões, inquietações, teses, argumentos, problemáticas.
Desligo o rádio, fecho as janelas de pau, acendo a luz do meu candeeiro de secretária. A noite apoderou-se do meu quarto, de mim. Terei de descer dentro de pouco tempo para jantar. Mais uma vez agirei como se nada se passasse.
Estou de volta. O tempo escasseia e ainda está tudo por dizer.
Tenho algo para lhe confessar. Investiguei-o. Sou detentor do seu passado tão bem escondido, meu caro Dr. Carlos Fonseca... ou devo dizer Isidoro dos Santos?! Lembra-se de quando tinha dez anos? Recorda-se da sua tentativa de suicídio? Ainda deve ter as duas cruzes... Diga-me Dr., é isto o fim? Acabará aqui o meu sofrimento?
Sinto que lhe devo um pedido de desculpa. Esta minha incessante procura pela paz fez com que o insultasse. Não tenho o direito de remexer no seu passado. A vida é sua, só sua, e faz dela o que desejar.
Deixe-me dizer-lhe só mais uma coisa. Deixe-me dizer-lhe que o admiro. Admiro-o por ser quem é. Admiro-o pela forma como conseguiu ultrapassar, contrariar o seu destino. Há alguma receita que me possa dar? Dizem que somos donos de nós, do nosso destino. Já ouvi a tantas pessoas «... tu tomas as tuas decisões e por cada caminho escolhido, abrem-se outros tantos, de entre os quais terás novamente de decidir qual deles seguir...» Oh!... Não entendo como é possível tanta gente andar enganada... O Mundo inteiro precisa de rever a sua filosofia de vida.

(09/12/2001)

2 comments:

Veny said...

Este texto está espectacular. Faz pensar um pouco, faz querer saber, perceber um pouco mais.

Foi da tua autoria? Está mesmo muito bom.

Parabéns.

someofme said...

Obrigado pelo comentário :)

Sim, o texto é da minha autoria, como a grande maioria dos textos que andam aqui pelo blog.

Quanto aos "Parabéns", bom, a minha modéstia exagerada diz-me que não os posso aceitar ;)

Espero que tenhas gostado do resto que leste e que gostes do que venhas a ler.