Tuesday, April 08, 2008

Bernardo e Matilde* II

*Excerto de Demasiado Cedo

Arrancou em direcção a terras de ninguém, à praia. Parou o Mercedes no guincho, saiu do carro, ajudou Matilde a pôr-se de pé, amparou os passos trôpegos desta na descida para o areal. Estendeu a manta, azul, a lembrar a cor e o aconchego do sofá, abriu a garrafa de champanhe comprada minutos antes ainda na discoteca, encheu dois copos, estendeu um a Matilde.

- Espero que esta noite seja memorável – disse Bernardo.
- A primeira vez guarda-se sempre na memória. Nunca antes me tinham trazido até à praia.
- Espero que goste do ruído do mar. venho aqui várias vezes…
- Com as suas conquistas!

Bernardo riu.

- Não. Sozinho. O mar relaxa-me, desperta os sentimentos, os pensamentos de introspecção que os vários barulhos da cidade não permitem tornar clarividentes…

«"Clarividente" é uma boa palavra para utilizar na televisão.», pensou Matilde.

- Tenho por hábito vir de mota. Os veículos de duas rodas têm outro encanto, transparecem mais realisticamente a vida, a corda bamba que percorremos diariamente, da qual não podemos cair, na qual somos obrigados a mantermo-nos direitos, na qual tropeçar iguala a morte. Sem retrocessos, nem desvios…

Bernardo levantou-se. Olhou de relance para Matilde. O olhar desta, incrédulo, demonstrava bem que não compreendia uma única palavra do que proferia. Esqueceu-se da razão pela qual a tinha levado ali, como fizera com tantas outras raparigas antes de Paula, embora na maioria das vezes se limitassem a conversar. Com Matilde o acto de conversação não era possível. Restava-lhe o monólogo.

- Isto a maioria das pessoas não entende. Não compreende que quando caímos e nos levantamos estamos na realidade a seguir em frente, que uma verdadeira queda implica a morte. Por isso vivemos todos vidas paralelas, agarramo-nos aos outros para não largarmos a corda. Somos suficientemente egoístas para gostarmos mais eles do que de nós. Abandonámos as comunidades onde vivíamos serenamente em grupo e chamámos a isso civilização, sociedade, evolução, cultura. E depois apareceu o Freud e a psicanálise e somos todos malucos. Nós não somos loucos, somos simplesmente seres que precisam de laços, que precisam de retornar à teia de cordas em que anteriormente vivíamos. A Matilde compreende? Claro que não! Nem eu, às vezes, entendo muito bem o que digo. O Carlos julga que eu é que devia fazer terapia. "Tu tens de consultar um médico. Um dia ainda acabas como eu. Estendido numa viela qualquer." É do Norte. O Carlos…

«Eu arranjo com cada um… Tanto dinheiro, tanto exibicionismo… Nunca mais passa à acção… Estou a ver que quando chegar a casa ainda vou ter de resolver isto de outra maneira. Logo agora que estava mesmo na mood!» Estes pensamentos percorriam a cabeça e Matilde enquanto Bernardo falava. Quando recuperou a atenção, ou o que dela era possível, já o tema era completamente diferente. Amor. Divaga sobre o Amor. Como se essa palavra interessasse a alguém. O Amor não dá dinheiro.

- …apaixonado. Gostava mesmo de estar novamente apaixonado. Sem compromissos, sem Amor, pura paixão. Sentir o sangue a pulsar nas veias. O desejo a percorrer o corpo só de pensar no nome dela. A paixão é muito diferente do Amor. Quando se ama, tem-se uma ligação para a vida. Talvez por isso amemos tão pouco. Talvez por isso haja cada vez mais divórcios. Talvez por isso sejamos cada vez mais infelizes. O Amor implica Amizade. E na sociedade a Amizade tornou-se quase impossível. Há excepções, claro. Aqueles raros cruzamentos de cordas. Daqueles tão entrelaçados; não possibilitando o desfazer de nós. Estive a uma semana do casamento. Deixou-me.

5 comments:

Sara said...

"Quando se ama tem-se uma ligação para a vida"...

I sure hope so...!!! ;)

Unknown said...

Gostei muito do texto. É fácil ser transportado pelas palavras e para o interior dos pensamentos dos personagens. Esses encontros e desencontros são-me familiares, quer na escrita quer na vida real.

Abraço ;)

someofme said...

Sway, sabes bem que sim ;)

Mikael, não sei se concordo contigo... Mas é mais porque não considero que o meu trabalho de construção de personagens seja muito bom lol

Beijos e abraços a quem de direito ;)

Alien said...

perde-se tanto qd se deixa de vir à blogosfera... saudade de Bernardo e MAtilde ;)

someofme said...

Ah pois é... Bom, vou continuar a minha Terra do Nunca

Muahahahahahahahahahahah