Não me viste!

Acordei mais cedo. Acontecimento raro nas nossas vidas. Voltei-me na cama e fiquei a ver-te dormir. A tua expressão, serena, como se estivesses num lugar melhor. Um lugar que a todo o custo preservavas. Nunca tentei lá chegar, mas conservei sempre o desejo de um dia descobrir a passagem secreta para esse teu outro universo.

Acordei mais cedo e fiquei a ver-te dormir. Senti que sabias que o estava a fazer. Podia vê-lo na tua face, no teu semblante, mais fechado e carregado como se quisesses ocultar-me o caminho para os teus sonhos mais bem guardados. Nunca deixei de os tentar conhecer, mas sempre encontrei as portas trancadas com múltiplos truques e engenhos. Por cada um que eu conseguia ultrapassar, um novo surgia.

Acordei mais cedo, observei-te e dei-te um beijo na testa. Sentiste os meus lábios a tocarem-te na pele e abriste ligeiramente os olhos. Não me viste. Não me podias ver. Olhaste para o relógio na mesinha de cabeceira. Marcava 11:30. O teu rosto, o teu olhar, drasticamente transfigurados, pareciam desejar que fosse ainda de noite. Espreguiçaste-te. Levantaste-te e caminhaste para a casa-de-banho. Lavaste a cara. Olhaste-te no espelho. Segui-te, como te sigo todos os dias. Fiquei a admirar-te enquanto te barbeavas. Hoje acordei mais cedo e por uma fracção de segundos, enquanto os teus olhos se tocaram, pudeste sentir a minha presença.

Acordei mais cedo, fiquei a ver-te dormir, observei-te, dei-te um beijo na testa e segui-te durante todo o dia. De noite, quando te voltaste a deitar e eu, senhor das insónias, fiquei acordado a teu lado, pude voltar a ver o teu rosto, o teu semblante, a tua expressão, serena, como se estivesses num lugar melhor. Um lugar inconscientemente só teu.